“E nessa loucura de dizer que não te quero, vou negando as aparências, disfarçando as evidências.” A música Evidências, da dupla sertaneja Chitãozinho e Xororó, além de ser um clássico da música popular brasileira, pode ser utilizada como um exemplo perfeito quando o assunto é autoengano.
Parece estranho, mas “negar as aparências”, “disfarçar as evidências” e, por fim, chegar ao ponto de acreditar nas próprias mentiras, assumindo-as como verdade, é um mecanismo inconsciente do cérebro, mais comum do que se imagina.
Isso porque o autoengano é uma defesa natural da mente para evitar situações incômodas e proteger o cérebro de superexposições desnecessárias, que aumentam a ansiedade e provocam tensões exageradas. O problema é quando o autoengano se transforma em um mecanismo de fuga da realidade, impede a solução de conflitos e acaba por atrapalhar o crescimento pessoal e prejudicar o crescimento profissional.
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Autoengano: tem gente que mente e nem sente
Quem nunca adiantou o relógio para ter a sensação de que está constantemente atrasado e, assim, conseguir cumprir melhor com seus compromissos nos horários agendados? Ou ainda, quem nunca se queixou de que o baixo salário é o que impede de realizar sonhos, mas nunca parou para analisar as despesas e repensar os gastos, cortando supérfluos? E mais: quem nunca culpou – ou conhece alguém que culpou – o chefe por sua estagnação profissional, mas não parou para considerar os feedbacks recebidos nem procurou adquirir competências para aprimorar o trabalho executado?
Os exemplos citados no parágrafo acima são formas de autoengano, um mecanismo de defesa natural do cérebro, utilizado diariamente pela mente para aliviar o sofrimento e diminuir a angústia perante a situações que causam desconforto.
“O autoengano é um mecanismo de defesa bem eficaz para diminuir ou retirar a angústia. É quando a própria mente prega peças em si, transformando em verdade ou realidade aquilo que é ilusório ou mentira”, explica o médico Bonifácio Rodrigues, psiquiatra do Dr. Consulta e membro titular da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP).
Por ser um mecanismo de defesa natural, o autoengano nem sempre deve ser considerado prejudicial ou ruim. “É algo que vem do crescimento do nosso psiquismo para que ele seja protegido de uma superexposição à ansiedade, de tensões exageradas e de coisas que podem nos prejudicar”, destaca o psiquiatra.
O problema, porém, é quando este mecanismo passa a ser utilizado pelo cérebro de maneira exagerada, servindo como muleta para fugir de responsabilidades, criar ‘realidades’ ilusórias mais confortáveis e atribuir a outras pessoas ou a fatores externos a culpa de todos os problemas, atrapalhando, assim, o crescimento pessoal e prejudicando o crescimento profissional.
“Existem pessoas que negam doenças, mesmo que isso lhe custe uma redução na expectativa de vida; existem pessoas que negam problemas em relações familiares, transformando aquele pensamento ou sentimento em outra coisa positiva; existem pessoas que negam situações financeiras, que mesmo tendo grandes dívidas vivem e se comportam como se não tivessem”, exemplifica Bonifácio Rodrigues, que destaca, que muitas vezes, esse é um comportamento inconsciente.
No trabalho, um comportamento comum decorrente do autoengano é a negação de falhas e defeitos, como profissionais que atribuem ao chefe toda a responsabilidade por sua estagnação profissional, se apoiando na desculpa de perseguição ou de que está sendo injustamente avaliado em vez de buscar aprimoramento. Note, neste caso, que as justificativas fazem sentido e podem ser facilmente tomadas por verdadeiras.
Outro exemplo de autoengano bastante presente na contemporaneidade é a formação de comunidades em torno de interesses, pontos de vista, crenças e opiniões, que reforçam pensamentos tendenciosos e repelem contrapontos e questionamentos.
“Neste sentido, o autoengano está totalmente ligado ao nosso sistema de crenças. Toda informação, por mais tendenciosa que seja, se combina com o sistema de crenças que eu carrego comigo, logo, se torna verdade. É o caso de quem é negacionista com relação à pandemia. Essas pessoas tendem a selecionar e se apegar a informações isoladas, mas que combinadas com seu sistema de crenças fazem sentido. Então, reforça-se uma crença, iniciando o processo de autoengano”, explica o psiquiatra do Dr. Consulta.
Os perigos do autoengano
Comportamento vitimista, infantilizado, fuga constante de responsabilidades, dificuldades para encarar e resolver problemas e atribuição de culpa a outras pessoas por fracassos pessoais são alguns dos perigos do autoengano, que acabam por atrapalhar o crescimento pessoal e prejudicam o crescimento profissional, fazendo com que a pessoa “ande em círculos”.
“O autoengano tira a possibilidade de encarar e solucionar os problemas, afinal de contas, se a gente não os reconhece e se para nosso psiquismo eles não existem, logo, esses problemas não precisam ou devem ser solucionados”, pontua o doutor Bonifácio Rodrigues.
Críticas, julgamentos e justificativas constantes são alguns sinais de que a pessoa pode estar se autoenganando. Reconhecer essa possibilidade, inclusive, é o primeiro passo para escapar deste ciclo.
“Precisamos estar sempre abertos ao contraditório e atentos à possibilidade de estarmos nos autoenganando. A melhor forma de se proteger do autoengano é estar aberto ao diálogo: procure entender o ponto de vista das outras pessoas que conversam com você, saber de que forma essa pessoa chegou em determinadas conclusões e o que te impede de concordar com esse ponto de vista, considerando sempre a possibilidade de estar tentando se proteger de uma realidade desconfortável”, orienta o membro titular da ABP.
Um exercício proposto pelo psiquiatra para manter a mente saudável e evitar o autoengano prejudicial é fazer uma lista de possibilidades, descrevendo pontos de vista diferentes e diversas fontes para determinado acontecimento sempre que se deparar com algo que conflita com a realidade que você gostaria de estar.
“É preciso vigiar nossa mente. É o que chamamos de betacognição, que é o ato de vigiar/pensar sobre os nossos próprios pensamentos. Também é recomendado fazer um exercício de metalinguagem, que é vigiar e pensar sobre nossos próprios discursos. Estar aberto ao ponto de vista e ao discurso do outro faz com que nosso mecanismo de defesa não seja tão inflexível e rígidos a ponto de nos atrapalhar mais do que nos ajudar”, orienta.
Além disso, para as pessoas que têm esse mecanismo de defesa muito exacerbado e que se prejudicam com o autoengano, o psiquiatra Bonifácio Rodrigues recomenda procurar ajuda psicológica ou psiquiátrica.
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