Por volta de 1895, parisienses se reuniram em uma sala escura, com uma grande tela. De repente, o desespero bateu quando avistaram uma locomotiva se movendo em direção à plateia a todo o vapor. Essa foi uma das primeiras experiências humanas com o cinema, que despertou temor com “L’Arrivée du Train” (Chegada de um Trem), dos irmãos Lumière. Parece um universo muito distante em relação à interação que temos hoje com as redes sociais, como o TikTok. Mas pode-se entender como o início.
Isso porque quando a TV entrou dentro das casas, as imagens se tornaram domésticas e, assim, uma intimidade maior com o conteúdo se desenvolveu. É possível que você já tenha dado conselhos para a mocinha da novela ou até mesmo xingado um jogador de futebol que errou o gol. Essas reações ocorrem com menos intensidade e frequência num espaço público mediado, como o cinema. Agora, imagina a intimidade que o seu smartphone tem com você, sendo que é um meio estritamente particular. E foi assim que o TikTok se sobressaiu.
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Desvendando o algoritmo do TikTok
Não se pode deixar pra lá a função do algoritmo de rede social. Há pesquisas que se debruçam nas consequências da IA. Conforme Blake Chandlee, presidente de soluções comerciais globais do TikTok: “O Facebook é um aplicativo social. Construíram todos os seus algoritmos tendo como base o gráfico social. Somos uma plataforma de entretenimento. A diferença entre os dois é bem significativa”, afirmou para o The New Yorker.
O especialista em inteligência artificial e mídia social especializado nos fundamentos operacionais da persuasão e psicologia relacionada, Paul Dabrowa, em entrevista ao Financial Times, afirma que a rede social chinesa é um “programa que desenvolve modelos comportamentais preditivos corrigidos a partir dos dados expostos pelas pegadas digitais dos usuários online. Isso inclui seus computadores, smartphones, wearables e praticamente qualquer outro dispositivo de rastreamento de dados”.
Recentemente, o relatório “iOS Privacy: Announcing InAppBrowser”, criado por Felix Krause, pesquisador de software da Universidade de Viena, na Áustria, demonstrou que a estrutura do app ajuda a detectar essas pegadas digitais. Quando os usuários entram nos anúncios do TikTok ou visitam links no perfil de um criador, o aplicativo não abre a página com navegadores comuns, como Safari ou Chrome. “Enquanto você interage com o site, o TikTok se inscreve em todas as entradas do teclado (incluindo senhas, informações de cartão de crédito etc.) e em cada toque na tela, como em quais botões e links você clica”, aponta o relatório.
“Como outras plataformas, usamos um navegador no aplicativo para fornecer uma experiência ideal ao usuário, mas o código JavaScript em questão é usado apenas para depuração, solução de problemas e monitoramento de desempenho dessa experiência – como verificar a rapidez com que uma página é carregada ou se ela trava”, afirma a porta-voz da rede social Maureen Shanahan, em comunicado para a Forbes.
O telefone é o que interessa
Muito se foca no algoritmo para compreender as consequências produzidas pelas redes sociais. Mas, diferentemente do YouTube ou Facebook, o TikTok é totalmente desenhado para ser consumido pelo smartphone, de forma individual e solitária. Essa, inclusive é uma característica da geração Z, os nascidos entre 1995 e 2010, nativos digitais, que nasceram com um celular na mão e são a maior parte dos usuários da plataforma chinesa, de acordo com “Distribution of TikTok users worldwide as of April 2022, by age and gender”, da empresa alemã de dados de mercado Statista.
Marshall McLuhan, o teórico da célebre frase “o meio é a mensagem”, expôs a importância da tecnologia ante o conteúdo, porque ela se torna uma extensão do nosso corpo. Podemos voltar ao exemplo inicial ao que aponta para a transição do cinema para a TV, que ocorreu em meados do século XX e permitiu que as imagens em movimento entrassem em nossas casas. Uma vez restrito às salas de cinema, esse conteúdo passou a viver conosco – assistimos enquanto nos preparamos para trabalhar pela manhã, jantamos e interagimos com a família. Se a televisão se tornou a extensão doméstica, o smartphone, hoje, é a extensão individual dos corpos.
A pesquisa “Who are America´s toilet texters?”, divulgada em 2019 pela Bank My Cell, empresa de revenda de celulares norte-americana, identificou que 96% dos usuários da geração Z e 90% da geração Y costumam levar o celular para o banheiro. Esse dado mostra a mudança de como recebemos, processamos e nos relacionamos com a mensagem do campo público dos cinemas para o privado das nossas salas e, mais íntimo, do banheiro.
Outra particularidade é o engajamento que temos com os influenciadores digitais. Se antes sonhávamos com as divas do cinema, que se aproximavam às deusas do Olimpo; hoje trazemos essas figuras famosas do TikTok para mais próximo, sendo comum comentarmos: “você viu que a Jade cortou o cabelo?” ou “a filha da Virgínia nasceu”. Referenciando essas pessoas com um único nome, porque é assim que nos relacionamos com nossos “amigos”.
Os espectadores desenvolveram cada vez mais relacionamentos “parassociais” com as pessoas que viam através dessas telas, ou seja, desenvolveram uma intimidade à distância, como Donald Horton e Richard Wohl observam no artigo de 1956: “Mass Communication and Para-Social Interaction”. O público doméstico passou a ver esses personagens da mídia de massa como confidentes e amigos, dando às emissoras os meios para manipular o público em um nível mais pessoal.
Assim como nosso relacionamento com a mídia mudou quando ela entrou em nossas casas, ela continua mudando ao invadir nossos smartphones. Esses dispositivos, que estão fortemente integrados às formas como pensamos e processamos informações, permitiram que o TikTok se posicionasse como uma extensão de nossas mentes. Se quisermos nos livrar do alcance do aplicativo, devemos primeiro entender como a mente funciona na era da tecnologia.
O fluxo do smartphone
Se no buscador do Google, temos que saber o que queremos pesquisar, o TikTok promete revelar nossos desejos mais profundos, mesmo que estejamos inconscientes do que intencionamos. A rede social pode ser entendida como uma plataforma não mediada por quem a está usando. Por ser acessada apenas pelo smartphone, a mídia chinesa proporciona um “estado de fluxo” que, sem ter um único usuário adicionado ao perfil, a atenção é totalmente canalizada para o conteúdo em questão. Essa análise é feita pelo escritor Kyle Chayka, colaborador do The New Yorker e especialista em tecnologia e cultura da internet, em seu ensaio “How do you describe TikTok?”. A arquitetura central dessa experiência (desde o deslizar verticalmente para outro vídeo até a exibição em tela cheia) é construída em torno de nossa familiaridade com os parâmetros do telefone.
O imediatismo criado por esse flow permite que o usuário do TikTok renuncie ao processamento reflexivo associado à audiência ativa. A distância necessária para a intervenção e interpretação crítica é tomada pelo curso contínuo de vídeos curtos e a rolagem infinita e irracional.
A teoria da Mente Estendida desenhada pelos filósofos David Chalmers e Andy Clark, em 1998, com o artigo de mesmo nome, entende que a mente vai além do espaço biológico do crânio. Seria como se, num campo fictício, implantássemos um chip na mente de um indivíduo que possibilitasse ele ter o conhecimento de todas as palavras da língua portuguesa. E se esse chip estivesse externamente ao crânio? Ou fosse um app de dicionário que instalamos no nosso celular e andamos por todo o lado?
Para os filósofos, a mente não está estritamente ligada a nossos corpos, mas sim distribuída por um sistema amplo. As ferramentas externas agem como extensão do nosso cérebro, e por isso fazem parte da mente. Tal como acontece com a nossa memória, esses gadgets cognitivos podem “emperrar” ou ficar indisponíveis (todos nós experimentamos falhas de memórias ou o famoso “branco”), desde que atinjam um padrão funcional.
Essa teoria nos dá a estrutura para entender melhor nossa relação peculiar com nossos telefones. Principalmente os mais jovens, um telefone atende aos critérios estabelecidos pela teoria da Mente Estendida.
Por esta ótica, é possível compreender que o poder do TikTok está acima do algoritmo refinado. Na verdade, a plataforma soube arquitetar seu modelo de transmissão ao redor de nosso relacionamento com nossos telefones, o que representa uma transformação. Segundo a Wired, se a TV trouxe a mídia para a casa das pessoas, o TikTok ousa trazê-la diretamente para nossas mentes. A recepção imediata e passiva que experimentamos na rede social depende do contexto do telefone, assim como a recepção familiar da televisão procede o contexto doméstico.
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